autor: Daniel Ignácio Franco
Enviado por: Tangerynus
A Vila Carioca não era propriamente uma ilha. O batismo decerto ocorrera em época das chuvas. Tornava-se um pântano e nem precisava que a chuva fosse torrencial. O acesso de veículos por mais adequado que fossem para terrenos alagadiços, se tornava impossível. Não era bem rua o que existia, eram caminhos para esgotos das casas, que empoçava nos buracos e valetas, transformando a vila, mesmo durante as mais intensas estiagens, num grande lamaçal. A fedentina era insuportável e misturado, às químicas e detritos das várias industrias vizinhas, formava caldeirão do inferno, adjetivo que bem representava aquele lugar para qualquer cristão que viesse a conhecê-lo por volta de 1947.
Localizado na região baixa do bairro, o contraste era marcante em relação à outra parte, o alto do Ipiranga; cantado em verso e prosa por casarões coloniais seu histórico e ruas bem delineadas.
Sapo, não era sabido se o nome vinha ligado ao grande número deste peçonhentos répteis que somavam seus saltos aos dos moradores “humanos” que não caminhavam e sim, saltavam a infinidade de obstáculos que transformavam uma simples ida ao botequim mais próximo, numa aventura sem precedentes: uma valeta, ora um buraco com fezes, ora os inevitáveis escorregões que na maioria das vezes o desafortunado e a pergunta era comum e desnecessária.
– A senhora caiu de novo, Dona Genoveva?
– Não foi nada. As pernas não estão aguentando muito, mas não machucou, foi só a roupa.
A resposta da infeliz, mesmo diante da constrangedora situação, demonstrava consolo. Bem se diga que só o fato de não haver destroncado uma perna ou um braço, era razão para conformismo.
Alguns dias decorreram desde a chegada na monumental e bonita estação ferroviária Júlio Prestes, localizada na parte norte do centro da cidade de São Paulo. Doze cansativa horas sentados no banco de madeira do trem poder-se-ia dizer um conforto quando comparado ao que ainda nos aguardava. Com a mala em uma das mãos e a outra segurando firme a minha, a recomendação era repetitiva.
– Não largue da minha mão filho. Aqui é muito fácil gente se perder.
Depois de andarmos por um labirinto de ruas e praças, atravessando na frente de grande número de pessoas, carros e ônibus, que nos causavam sobressaltos a cada instante, acabamos por chegar no ponto do bonde Fábrica, e fomos nos juntar ao amontoado de pessoas que nem sequer se olhavam. Parecia realmente um vagão. Os passageiros se atropelavam em busca de acomodação. Minha mãe já familiarizada com aquele problema e espertamente nos conseguiu um assento. Muitas pessoas viajavam dependuradas nos estribos laterais inseguramente, mas demonstrando não se importarem. Lá vinha o cobrador. Este era um verdadeiro mestre na arte do equilíbrio. Saltava de um ponto a outro do estribo, utilizando somente as pontas dos pés, não se importando com a velocidade do veículo. Cobrava, fazia trocos e ainda registrava as passagens num mecanismo localizado na parte alta do bonde, que fazia um tilintar de campainha por cada passagem cobrada. Às vezes um caminhão parado era antes visto por este malabarista, que em gritos alertava os passageiros.
– Olhem o caminhão.
E todos os pingentes se encolhiam da maneira que fosse possível, para não terem as costas atingidas pela carroceria do veículo parado, o que seria fatal. “Tim- Tim” – mais uma passagem cobrada – Dois Pra Light (Cia. Proprietária Dos Bondes) Um pra mim. Foi dos primeiros comentários sobre as profissões da cidade grande que escutei. O português, como era chamado, proprietário de um próspero armazém de secos e molhados, diziam que chegara ao Brasil com uma mão na frente e outra atrás; dois anos como cobrador e veja ai, já se arrumou.
Duas horas de bonde; mais caminhada; mais gente estranha, agora em terreno mole, pegajoso e barrento, e lá estávamos finalmente na casa do espanhol.
Tomado pelo cansaço, estirado no chão sobre algumas peças de roupas que improvisava um confortável colchão, o sono chegou rápido e perturbador. A nova realidade era assustadora. Os comentários sobre o rude trato entre as pessoas não se confirmaram, pelo menos naquele mundo de pequeno diâmetro. A mistura de português e espanhol na fala que nos recebeu foi bastante amável, desejando boas-vindas.
O fazedor de filhos justificava a fama, corria o segundo ano de seu novo casamento e lá na barriga da companheira já estava o espanholzinho número dois. Dos dez filhos que sobreviveram do primeiro casamento, o único que ainda morava na casa era o Zequinha, que contava na ocasião dezoito anos completos. Integrante do Futebol Clube Onze da Vila, mais conhecido como Zequinha (Pé-de-ferro), famoso lateral esquerdo, era respeitado nos campos varzeanos e até considerado uma promessa para o profissional do Futebol. Alguns chegava a afirmar:
– Se o Zequinha for treinar no C.A.Y. – Clube Atlético Ypiranga, time profissional do bairro, na certa vai ser contratado.
No domingo, jogo valido pelo campeonato da várzea Ipiranguense, na partida contra o GRITO DO IPIRANGA F.C., campo dos torcedores, Zequinha entrou no jogo disposto a confirmar os comentários que se faziam a seu respeito. Primeiro lançamento de bola para o ponta-direita do time adversário. Zequinha fungou na corrida, mas não conseguiu evitar o petardo do crioulo de corpo fino e muito veloz, que raspando a trave quase resultou no primeiro gol da partida. Minutos depois, elevado pelo moral da jogada anterior, o ponta abusou. Passando por um dos zagueiros, ajeitou a bola e desferiu a bomba. Zequinha só escorou com a sola da chuteira número quarenta e dois, que formava no seu pé esquerdo um verdadeiro bloco de concreto armado. O impacto foi violento. O barulho foi ouvido a cem metros de distância. O crioulo rodopiou no ar, saiu cambaleando e abrindo um corredor no meio dos torcedores que margeavam a linha demarcatória do campo foi bater o costado na cerca de uma casa localizada a dez metros do campo, caindo já quase desfalecido. As massagens na esperança de fazer o craque do Grito do Ipiranga voltar ao jogo foram inúteis, não havia recuperação. Jogada lícita, foi na dividida, assinalava o juiz para os companheiros do time da vítima, que não se conformavam. A partir daí, o jogo tornou fácil para os Onze da Vila. Sem sua revelação, o Grito não era o mesmo time, a derrota foi inevitável. O que na certa acabaria com a promessa futebolística do lateral, estava no costume de encher a cara depois das partidas. Quando ganhava era pra comemorar, quando perdia para afogar as mágoas. Às segundas-feiras a serralheria do Sr. Theodoro nunca contava com a sua presença.
Sr. Theodoro, torcedor fanático dos Onze da Vila, relevava a falta e até justificava:
– Nas segundas o Zeca está dispensado do serviço. Ganha sem trabalhar, é muito merecido.
Os dias passavam rapidamente e minha mãe demonstrava sua preocupação. A permanência na casa do espanhol não podia se alongar por muito tempo, sabia disso. Arrumar emprego não foi difícil, a fábrica de louças, digo Cerâmica Sacoman – início da Via Anchieta, estava admitindo operárias e a contratação foi imediata. O problema maior residia na acomodação para a grande família. A procura por moradia era intensa, gente chegando de todas as regiões do estado, além dos retirantes nordestinos.
Havia a chácara dos portugueses e lá poderia estar a solução. Uma mulher de semblante sereno e modo objetivo de conduzir a conversa, foi quem nos recebeu. D. Luiza era uma espécie de matriarca da colônia lusitânia, administrava de maneira competente aquele feudo. Caía a tarde e alguns dos moradores, já tendo cumprido suas tarefas, sentavam à frente das casas de madeiras que formavam um bloco compacto, umas ligadas às outras. No meio, a ruela que separava os dois grupos de casas. Dos moradores dali alguns trabalhavam na própria chácara, que produzia grande quantidade de verduras e legumes formando um campo verdejante; o produto era comercializado nas feiras-livres.
Chamou-me à atenção uma das casas onde um sanfoneiro executava uma melodia nordestina. Podia se sentir a melancolia naquelas notas musicais.
Dois quartos de madeira, uma cobertura que servia como cozinha. Era a casa esperando pela grande família. Naquela noite minha mãe escrevia o veredicto, não haveria mais retorno. A esperança de rever os vastos e verdes campos, os jardins, a escola, meus amigos era como se fosse parte da melodia tocada por Seu Raimundo do Fole.
O dia da chegada não demorou. Fui para a chácara e comecei a caminhar pelos intervalos dos canteiros de verduras. O sol se escondia e os trabalhadores retiravam água dos poços para molharem as plantações. A ramagem verde das cenouras chamou a atenção do estômago. Fui interpelado por um dos trabalhadores; parecia ser muito comunicativo e tinha na fisionomia a bondade.
– O menino veio de onde? – e não esperando pela resposta completou – Coma uma cenoura.
Enquanto a lavava dizia que era muito bom para a saúde e para os olhos.
– Vim de Avaré. – respondi
– Avaré! Onde fica essa cidade?
Como…!? pensei, não era a primeira pessoa a dizer que não conhecia minha cidade; não podia compreender, já que para mim Avaré era a mais importante cidade do mundo. Dei uma mordida na cenoura e o gosto não agradou. Lembrei saudoso das mangas maduras. Lembrei também que já deviam estar por perto e saí correndo sem agradecer.
A imagem daquela “chegança” seria para sempre. A noite parecia ter vindo com eles. Meu avô foi o primeiro a aparecer. Por um instante aquela ruela de uma centena de metros se tornou a Via Sacra. Carregando a pesada mala sobre os ombros, como se fosse uma cruz, meu avô era a própria imagem de Cristo. Seus seguidores, todos extenuados, caminhavam de cabeça baixa. Eram friamente observados pelas pessoas que ali moravam. O melancólico fundo musical da sanfona levou alguém a deduzir:
– Lá vem mais uma família de retirantes.
Mais próximo, um outro observou:
– As fisionomias não são de nordestinos, devem ser italianos que estão chegando do Sul.
O terceiro raciocínio mais prático e realista, completou:
– Braços fortes ali é que não faltam, daqui a pouco eles se arrumam. Vejam as moças são bonitas!
Aquele barraco de dois cômodos foi como um oásis para quem acabar de atravessar um grande deserto. Não havia disposição para reclamações; cada um se acomodava coa no podia; meu avô teve força para disciplinar:
– Mulheres e crianças ficam neste quarto, os homens no outro, amanhã a gente resolve o resto.
Minha e eu fechamos a única porta existente e sem nada falarmos, saímos andando, sabendo que a partir do dia seguinte estaríamos juntos com aquele grupo de pessoas para enfrentar o que desse e viesse da nova vida.
O dinheiro que restava da venda da casa chegara intacto, do farto almoço vinha a informação.
Toda precaução fora empregada. Contavam-se casos de roubo. Os comentários às vezes, ultrapassavam os limites do exagero:
– Há que com tanta esperteza que possuem, chegam a vender a estação da Luz e até o Prédio Martinelli.
– O transporte para o dinheiro fora um capítulo à parte: o bolso, preparado cuidadosamente na cueca de meu avô, tornava impossível o roubo dos contos de réis.
Naquele primeiro dia de cidade grande, a mudança ainda a caminho, algumas panelas e pratos emprestados dos vizinhos, que se mostravam solícitos aos novos aventureiros; um fogão improvisado com tijolos, e lá estava a especialidade da cozinha de minha avó: todos deliciavam o macarrão com frango.
A nostalgia era grande, a saudade bem maior, cheguei a abraçar Bié.
Recuperados do desgaste da viagem e saciados, os comentários demonstravam os descontentamentos. Rosa e Alice reclamavam da sujeira. Tio Rolo foi mais direto:
– Isto aqui pode ser chamado sem medo de errar de “Verdadeiro Cú do Mundo”.
Procurando proteção, meus dois irmãos se encolhiam perto da minha mãe. Esperançoso e prestativo convidei Bié para visitar as plantações de verdura. Não aceitou o convite e ainda resmungou com seu natural mau humor:
– Estou com raiva. Já vi uns cabeça chatas do meu tamanho zanzando por aí, não fui com a cara deles. Vai dar briga logo.
Meu avô precisava de informações sobre o aluguel de um caminhão de carretos para buscar a mudança que chegaria num trem de cargas naquele mesmo dia. Saiu com destino à casa do espanhol, ele ajudar, concluiu.
Na ausência do velho Arthur, a confusão se instalou. A indisciplina era geral, minha mãe tentava acalmar.
– Depois que todos tiverem seus empregos, a gente procura um lugar melhor para morar.
Josué apelava para sua religiosidade.
– É isso mesmo, voltar para o interior é que não dá… tudo há de melhorar se Deus quiser.
Sua última condicional vinha tímida, como se não houvesse a fé necessária, a convicção firme de que o Criador estivesse ao nosso lado.
Puxei meus irmãos para fora, levando-os para a chácara.
– Seus pais fizeram boa viagem? Perguntou de maneira cordial o regador de cenouras.
– Nosso pai morreu faz bastante tempo. – respondi num estalo.
Olhou para nós. Em seu rosto uma expressão terna já vista.
– Bem, venham aqui que acabei de arrancar algumas cenouras; estão bonitas e fresquinhas, vocês vão gostar. Uma cenoura por dia e nunca terão óculos em toda sua vida.
Dois meses se passaram e os poucos comentários sobre a mudança dava a certeza da adaptação. Até meus pesadelos se tornaram menos frequentes. Tuta e Josué empregaram-se na Oficina de Parafusos do Alemão, na Rua do Grito. Rosa e Alice conseguiram emprego nas Linhas Correntes, multinacional também conhecida como fábrica dos Ingleses. Rolo, por sua vez, demonstrava não haver nascido para tal vida, e dizia abertamente:
– Não cometi nenhum crime para ficar preso oito horas por dia, sendo vigiado. Meu negócio é outro.
Naquele dia minha mãe ficara em casa para me matricular na escola. A única sala de aula dividida ao meio para os alunos do 1º e 2º anos escolar me deixou confuso. Senti saudades de Dona Amélia. Ao deparar com a nova professora, não tive dúvidas de sua imagem, estava diante de um Rinoceronte.
– O menino vai ser matriculado em qualquer série? Foi direta. Se for no 2º ano precisamos fazer um teste. Foi colocando um livro na minha mão.
– Tenho o boletim que comprova a passagem para o 2º ano. – afirmou minha mãe.
– Aqui o boletim não tem valor, o que vale é o saber. – Olhando em minha direção determinou:
– Abra o livro em qualquer lição e leia em voz alta.
A expectativa dos outros alunos, os olhares a mim endereçados eram como um desafio. Gaguejava e a leitura não saia. As letras formavam símbolos desconhecidos. Perdi o controlo, mãos e pernas trêmulas davam a dimensão. Senti-me só, o mundo estava contra mim. Minha mãe parecia longe, e olhando-me angustiada, queria me salvar, mas não podia. O “pode” parar foi o pronunciamento de uma sentença.
– O menino está muito fraco na leitura, vai ter que fazer o 1º ano de novo, essas escolas do interior deixam muito a desejar. Completou de maneira prepotente.
– Terá que fazer o 1º ano de novo.
Não queria acreditar, chorei o dia inteiro. Aquele três meses longe dos livros foram fatais.
– Não quero mãe. Vamos voltar para o interior e lá eu estudo no 2º ano. – Gritava descontroladamente e enfurecido.
Os pesadelos voltaram mais intensos. A praça arborizada, o prédio majestoso do Grupo Escolar, o pátio cheio de alunos… tudo mais sombrio.
Passava os dias retraído, não queria conversa.
O Albino, filho mais velho do português Jeremias, parecia ser um bom amigo.
– Você vai começar na escola Deni, eu também, não sabendo do drama que me atormentava, festejava o acontecimento. Eu já tinha um amigo e isto amainava meu estado de espirito.
Os seis primeiro meses da nova vida passavam rapidamente. Meu avô, já avançado na idade para ser admitido na fábricas, fazia trabalhos de pedreiro. Percebia-se que sua audição estava bastante debilitada.
– Fale mais alto que não estou ouvindo-as. As vezes interrompia as pessoas que lhe dirigiam a palavra.
Com exceção de minha mãe que gastava a maior parte do ordenado no tratamento da vista doente, sem conseguir resultados positivos; os outros faziam bom proveito de seus ganhos. Boas roupas, bons calçados, até relógio alguns já possuíam.
Passeios aos sábados à noite na movimentada Rua Silva Bueno, e os seriados do Zorro no Cine Samaroni (Rua Silva Bueno) nas tardes de domingo, passaram a fazer parte do lazer nos finais de semana.
Tio Rolo, o único que não se submetia aos trabalhos rotineiros das fábricas, também não encontrava dificuldades.
Só o que sabia é que ganhava algum dinheiro tocando violão em acompanhamento de sanfoneiros nos bailes do salão social dos Onze da Vila F. C.
Bié, eu e meus irmãos passávamos os dias na chácara brincando com os outros garotos.
O tempo na cidade grande corria mais rápido, era o que parecia.
Assim era a vida naquele idos de 1947. A Vila crescia de maneira desordenada, as casas iam sendo construídas sem qualquer acompanhamento de infraestrutura. Aqueles esgotos a céu aberto que corriam na frente das casas, e que, agora com o aumento de moradores se implantava em definitivo, eram uma coisa que me incomodava. Já vinha o ano de 1948. Na festança que se preparava para a passagem do ano estava o sinal seguro do progresso.
Na grande mesa de refeição dos portugueses, fez-se silêncio, era sempre assim quando Dona Luzia pedia a palavra.
– Considerando o bom resultado financeiro que a chácara alcançou neste abençoado ano de 1947, faremos uma grande festa de final de ano, com foguetório e tudo. Convidaremos todos os moradores da chácara a participarem. Haverá comida e bebida à vontade.
Os preparativos começaram com dez dias de antecedência. Jeremias, português importado de verdade, dono de extenso bigode, era quem organizava e distribuía as funções para os homens.
O Sr. Arthur cuida de matar e preparar os porcos. – estava resolvido um dos problemas.
A festança era o assunto da chácara.
– Esses portugas quando resolvem comemorar é pra valer. A última festa foi gente para o hospital de tanto comer, falava um antigo morador.
A aprovação para o 2º ano escolar era mais um motivo para ser festejado e desta vez sem retorno.
– Finalmente era chegado o grande dia, a festança começaria naquela tarde do último dia do ano e só terminaria quando acabasse a comida e a bebida que de antemão, já se sabia ser em grande quantidade.
Os sapatos novos que obrigavam alguns a andarem meio desengonçados, roupas da época e até a exibição de incontáveis relógios de pulso, davam a conta do poder aquisitivo das pessoas. O álcool começava a descontrair os homens. Alguns em volta reclamavam a presença do sanfoneiro. Raimundo do Fole fora encarregado da parte musical.
– Estão brigando de faca! – alguém gritando em desespero.
Estabeleceu-se a correria.
Não se sabia qual era o motivo. O nordestino baixo e atarracado, empunhando a peixeira, queria briga e não encontrava adversário. Bem possivelmente a embriaguez lhe aflorara a rudeza da vida das caatingas e saudades da mulher e filhos que lá ficaram. Ninguém se arriscava a se aproximar do homem. A voz de Dona Luiza foi ouvida.
– Para homem, dê-me a faca. – conhecia a situação.
Como que vendo a imagem da Santa, o pobre sofrido retirante ajoelhou-se e em prantos entregou a arma. Dona Luiza colocou a mão na cabeça do homem e determinou:
Reforcem a segurança para que não mais aconteça isso.
As atenções voltaram-se agora para os foguetórios. O céu iluminado era maravilhoso. A criançada corria alvoraçada com a barriga mais cheia que de costume. A noite chegava, a festa continuava e o cansaço fez com que eu procurasse repouso.
– Deni, meu filho, por onde andou? – minha mãe demonstrava preocupação.
Venha aqui que guardei uns doces e refrigerantes. O Sr. Francisco lembrou de vocês e trouxe.
– Quem é esse Sr. Francisco?
– É um homem bondoso. Ele cuida das plantações de cenouras.
As mais variadas carnes: aquele toucinho de tocar a orelha quando se fala, doces; refrigerantes; bolinhos e aí a inevitável dor-de-barriga.
O sanitário coletivo que não me atendia por estar sempre sujo, obrigou-me a procurar o mato rasteiro nas proximidades da cerca protetora dos grandes tonéis que armazenavam os combustíveis da Shell. As cólicas juntava-se o pensamento tenebroso ao olhar os enormes reservatórios.
– Se um dia pegar fogo na Shell, a vila toda vai para os ares. – tragicamente, certa vez, ouvi comentar, ali mesmo, naquele lugar, fazendo aquilo.
Final de semana, já recuperado, aquele convite foi uma surpresa bastante agradável: O Estádio Municipal do Pacaembu estava em festa. Tarde ensolarada. As bandeiras dos times davam um colorido frenético e alegre aquele jogo de futebol, que prometia bom espetáculo.
Meu avô realizava um velho sonho, ver o seu São Paulo Futebol Clube. Ali estávamos. Eu sonhava com um copo d’água. Os torcedores inquietos pareciam não perceber o sol forte e os vendedores de refrigerantes que passavam a todo instante. Não podia aumentar as despesas; afinal já havia sido muito o convite. O pobre Bié não fora convidado, e olha que era um fanático torcedor são-paulino, fazendo às vezes, longas caminhadas até o ponto inicial do bonde para comprar o Jornal de Esportes. O jornal facilitava a identificação dos jogadores.
Não pude deixar de conter a simpatia pelas bandeiras verde-branco da Sociedade Esportiva Palmeiras. Foi amor à primeira vista, bem verdade. Mais de uma hora sentado no cimento quente, o sol causticante. O desânimo parecia geral. Olhei para um dos lados do campo simultaneamente à aclamação ensurdecedora da torcida. Os jogadores do dois times adentravam o gramado e corriam em direção à região central do campo. A euforia contagiava a todos. Era o futebol. O rosto de meu avô resplandecia de alegria. Foi muito agitado os minutos antecedentes ao início da peleja. Os torcedores não paravam de gritar; os jogadores, após rápido cumprimento, eram entrevistados por radialistas que disputavam cada palavra. Outros corriam de um lado a outro aquecendo-se e demonstrando habilidades com a bola como nunca vira antes. O juiz apitava nervosamente e gesticulando, dava entender a urgência para começar a partida. As posições eram tomadas aos poucos pelos jogadores. A apreensão era geral. Nem mais os entendidos arriscavam um resultado antecipado. O Estádio agora em silêncio. Finalmente o ponta-pé-inicial e o nó na garganta desfeito. A troca de bola cautelosa do início do jogo dava bem a medida do cuidado, mas as descidas pelas linhas de fundo já começavam e de maneira perigosa. E foi num desses lances que o ponta-esquerda Rodrigues, por volta dos cincos minutos de jogo, foi alcançar o centroavante Aquiles, que com cabeçada precisa colocou a bola no fundo da rede dos são-paulinos. Jair da Rosa Pinto, com potentes chutes, levava perigo à meta do São Paulo, Waldemar Filme e Caieiras davam segurança à defesa e o meio campista Dema estava em tarde inspirada. A explosão de alegria se fazia presente na agitação das bandeiras verde-branco, enquanto o adversário parecia se encolher. Olhei para meu avô e fiquei desconcertado; meu Deus, minha alegria não deveria ser a tristeza dele. Desejei que o São Paulo fizesse um gol. E só um. A resposta da grande equipe tricolor não tardou; Bauer, Rui e Noronha começavam a se entender; parecia uma injeção de forças o gol palmeirense. Os dianteiros Luizinho, Sastre, Leônidas, Remo e Teixeirinha, agora estavam endiabrados. O primeiro gol vinha de jogada espetacular. Leônidas de bicicleta e o revide da torcida são-paulina. O segundo e o terceiro veio ainda na primeira fase do jogo. Meu avô comemorava cada gol do seu time com desvario de palavras.
– Vamos meu time, vamos ganhar desses italianos polenteiros!
Os torcedores rivais começavam a mostrar reação, um deles chegou a falar:
– Vou acabar descendo o pau nesse caipira e mostrar pra ele a força de um italiano que gosta de comer polenta.
Preocupei-me; sabia que o velho não levava desaforo para casa. Vinha outro gol e a comemoração era novamente descontraída, não dando qualquer atenção ao que os outros falavam, deduzi: a surdez, era irônico admitir, naquele momento estava ajudando.
Meu time perdia. A boca seca e um sorveteiro à minha frente. Meu avô estava mesmo feliz.
– Um sorvete aqui pro menino. – gritou bem alto.
O resultado final surpreendia até os comentaristas mais experientes. São Paulo F. C., 5, Sociedade Esportiva Palmeiras 1; estava no placar do estádio em letras luminosas para não deixar qualquer dúvida.
O desconforto do estribo do bonde na volta para casa não conseguia tirar o sorriso do rosto do velho Arthur.
– Sobe aí, Deni. – preocupando-se em colocar-me num lugar mais seguro.
– Me arrumo aqui mesmo.
Lá íamos nós.
Um dia de muita alegria para aquele homem de vida sofrida. O doce do sorvete estava na boca e também me sentia bem.
Normalmente sisudo, na semana que se seguiu esteve falante e contente; seu estado de espírito melhorava ainda mais sua produtividade.
Sr. Otávio, experiente empreendedor da construção civil, conhecia o bom profissional e aquela oferta não tinha propriamente a finalidade de premiar o bom pedreiro, mas torna-lo mais comprometido com os trabalhos de sua empresa.
– A próxima casa que for construída poderá ser ocupada por sua família.
– Deixou claro que as condições do aluguel, quando da época, seriam solucionadas, sem problemas.
Toda a família comemorou. Uma casa de tijolos e ainda mais próxima do ponto de bondes. Quase que um sonho. A perspectiva de melhores dias, de maior conforto tomava conta do espirito da família, naquela noite de verão de 1949.
Tuta inspirado, procurava acordes na viola, tentando compor; lembro-me de que a letra trazia saudades de alguma namorada. Todos foram para cama mais tarde; nada fazia supor a tenebrosa noite que se avizinhava.
Duas da manhã; botijões incandescentes, em grande quantidade, impulsionados pelos gases de seu interior subiam para explodir a aproximadamente cinquenta metros de altura; tornando dia, aquela noite escura.
– Está pegando fogo na Shell! – alguns gritavam.
O tumulto estabelecido, fogo na Shell, a vila vai para os ares; era o que se passava na cabeça das pessoas, que corriam desesperadas e desordenadas de um lado para o outro, sem saber como se safar daquela situação.
Algumas mulheres vestiam apenas camisola. Mães e seus filhos menores; crianças em colos trocados; crianças chorando perdidas na confusão. Chamado por santos protetores.
O sono interrompido, bruscamente, deixava alguns abobados, só em condições de se integrar à multidão. As famílias saíam das casas deixando tudo para trás. Homens só de cuecas.
– O morro do Heliópolis. – alguém gritou.
Não havia tempo para escolha. Parecia o único lugar seguro naquele instante e a debandada foi geral. Todos corriam apavorados. Os mais velhos, as pernas enfraquecidas, eram ajudados por alguns, enquanto outros agiam no lema “salve-se quem puder”, atropelando quem estivesse à sua frente.
Os mais corajosos, permaneciam na chácara, formando um bloco, como se assim fossem mais fortes para enfrentar a catástrofe. Ninguém se apercebia que as explosões começavam a diminuir no número e na intensidade.
– Vem gente lá, um sobrevivente. – observou seu Jeremias.
Um vulto surgia, delineado pela claridade das chamas, ao fundo.
– Calma minha gente, o fogo não é na Shell. Estive lá perto, são os botijões de gás, mas está tudo sobre controle dos bombeiros. O incêndio na verdade foi na Oxigênio do Brasil (alguns quarteirões distante da Shell).
Fui obrigado a sentar pelo bambear das pernas. “Seu Francisco, vai ter coragem assim na puta que pariu” foi o que se passou na minha cabeça.
Meu avô ponderou:
– Homem de bons nervos, esse Francisco.
Os detalhes iam sendo relatados à medida que o Sr. Francisco falava sobre o fato da Oxigênio do Brasil, ter apenas um dos seus depósitos atingido pelo fogo e a desconcentração começava a tomar conta de alguns.
– Vocês viram o Mané do Fóle, só de cuecas, subindo o morro do Heliópolis com a sanfona nas costas?
O riso era geral.
– Quero ver as mulheres só de camisola, voltando para casa. – gracejava outro.
Os comentários sobre o acontecido àquela noite na chácara dos portugueses se estenderiam por muitos dias. Entre nossa família não se falava muito do acontecido. O constrangimento pela falta de solidariedade inibia os comentários. Alguns correram para o morro do Heliópolis, outros chegaram ao Ponto Fábrica (ponto de bondes), local bastante afastado dos fatos.
Embora ele não se apercebesse de minha presença, fiquei todo o tempo perto do meu avô.
Tempos depois, a rotina voltava na chácara e pouco se falava sobre aquela fatídica noite, porém uma coisa fora registradas: A coragem do Sr. Francisco.
Em um dos dias que se seguiram ouvi Rosa comentando:
– O seu Francisco e a Dita parece que estão se gostando.
Meu coração acelerou. “Minha mãe! Não pode ser verdade”. Passei dias com o peito doendo.
Rosa parecia com razão. Por diversas vezes, durante as constantes visitas, pude observar que todos contribuíam para que os dois conversassem a sós. Todos pareciam aprovar aquele namoro.
Minha brigas de rua agora eram mais frequentes; nem sequer escolhia adversários.
– Não sei o que está acontecendo com esse menino, parece que anda com o diabo no couro.
Comentou vó Martha, tentando estancar o sangue do meu nariz, resultado de um golpe.
Bié, que não ligava para cara feia, naquela briga, em que empunhando machado, investi contra ele, arrepiou e pediu clemencia antes do golpe fatal. Caí em prantos, nunca havia chorado assim antes. Bié estranhou.
– O que está acontecendo com você Deni?
– Não é nada, você não tem culpa, não interessa.
As lágrimas me acalmaram.
Moramos na chácara dos portugueses até o final de 1949, quando ficou pronta a casa prometida. A sanfona do Mané do Fóle e o violão do Tio Rolo, estavam bem afinados no baile de inauguração. Os pares dançavam animadamente na sala, enquanto bebidas, bolinhos e doces eram servidos no quintal. Casa nova, novos vizinhos, tudo era alegria. Alguns meninos, lá fora, esperavam pela oportunidade para entrar e participar. Tentando amizade convidei-os para entrar. Flô, Nego e Gume não se fizeram de rogados; meio ressabiados foram entrando naquele ambiente festivo. Uma menina de cabelos longos e olhos verdes, moradora numa das casas próximas chamou-me a atenção. Achava-a linda; olhei na esperança de que estivesse por perto; uma boa o asportunidade para começar uma conversa, pensei. Marília, fiquei sabendo seu nome, bem antes de conhece-la.
Jogo de bolas, nadar na lagoa, subir em árvores, bolinhas de gudes, papagaios. Eu e os novos companheiros tínhamos os mesmos gostos.
Passados dias, no conforto da nova morada, sem ratos ou baratas, sem nos preocuparmos em colocar panelas nas goteiras nos dias de chuva. Um poço e um banheiro só para a família, o que mais agradava às mulheres. Passei a acompanhar, em algumas ocasiões, minha mãe e Seu Francisco ao culto evangélico da Igreja Pentecostal. As mulheres cobriam a cabeça com um véu branco e se colocavam separadas dos homens. Gostava da Orquestra tocando aqueles hinos alegres, cantando para todos, contagiando os crentes com aquela paz. Não concordava com o pregador que condenava tudo, inclusive o jogo de futebol. Sr. Francisco procurava amenizar a rigidez das pregações, dizendo que Deus tudo permite, desde que não haja maldade. Citava jogadores de futebol que acreditavam em Cristo.
O namoro com minha mãe passava de um ano e o casamento aconteceu tempos depois. Passamos a morar numa casa de madeira construída no quintal da casa de meu avô. Sr. Otávio não ofereceu resistência, afinal representava mais dinheiro de aluguel para seus cofres. Sr. Francisco trocou os campos de cenouras pelas fornalhas incandescentes da Fundição à procura de melhores ganhos. Cabia-me a tarefa diária de esquentar a comida, lava a louça, arrumar e limpar a casa para que quando minha mãe, no final do dia, retornasse da fábrica, tudo estivesse em ordem. Apressava-me. A escola e o serviço de casa tomavam a maior parte do dia, restando pouco tempo para as brincadeiras de rua. Tirava algum tempo para ficar de espreita na casa da menina de olhos verdes. Só um olhar de Marília tornava compensador toda paciência. O que queria mesmo era ter mais idade, declarar meu amor, e talvez, até casar com ela.
Flô, Nego e Gume, nada tinham de românticos, com um ou dois anos a mais de idade, passávamos dias na rua, sem qualquer preocupação com o que viria no dia seguinte. Surgiu o convite:
– Ganhamos um dinheirinho com a venda de ferro velho e vamos visitar a Neuzona, topa Deni? – O mais velho do grupo, Nego, propôs.
– Topa o que? –indaguei.
– Está se vendo que você ainda não sabe das coisas. – disse Flô. A primeira vez, um dia tem que acontecer.
– Vamos mudar de assunto por enquanto, aí vem o filho do maconheiro.
– Assalto a Banco? Contém comigo.
Disse em voz alta antes de aproximar-se. Diante do silêncio ponderou:
– Uma trepadinha em um das putas da favela é o assunto, não?
Queria arrumar briga.
– Ralé, escória vão passar o resto de seus dias pagando para que as putas os aceitem, mas você Deni, com essa não contava. – só Polaco falava – Você nasceu para ter mulher e filhos. Quanto a mim, puta nenhuma terá meu dinheiro, mulher minha é só minha. Continuamos ouvindo. – Até mais, cuidado com a gonorreia, hein?
A ausência de Polaco deixou-nos em completo silêncio. Nego foi quem resmungou:
– Esse sujeito é capaz de acabar com o tesão de qualquer um.
Mesmo desconcertados, estávamos caminhando em direção à favela. A lamparina em um das mãos iluminava parcialmente o interior do barraco, tornando soturno o cenário.
– Quantos são? – perguntou grosseiramente, a mulher. Cobraria de acordo com o número de interessados.
Quinze minutos e o último da fila estava sendo convocado. Minhas pernas tremiam.
Ao entrar no pequeno e fedorenta quarto, a impressão foi de estar diante de uma porca enorme e suada sobre a cama. Uma daquelas que meu avô criava na Fazenda Boaventura. O cheiro era repugnante, a mulher percebeu minha indecisão, não demonstrou paciência.
– Vai ou não, menino? O tempo tá passando; é cinco minutos e nada mais.
Foram longos aqueles minutos; fiquei petrificado. A barriga doía; o alívio vem com o ultimato da Neuzona:
– Tá se vendo que hoje você não está com vontade. Volte outro dia, mas o pagamento não perdoo.
Na volta de casa, os comentários deixavam parecer que a Neuzona conseguira satisfazer seus clientes. Nego confessou que, se tivesse mais dinheiro, ia outra vez. Calado, sentia uma enorme frustração, e nada podia dizer. Pensava no que Polaco dissera. “Casar e ter filhos”.
Estávamos, agora, no ano de 1950 e o carnaval festivamente abria as cortinas para a realidade da primeira copa mundial de futebol. O último torneio havia sido realizada na França no ano de 1938. Construído especialmente para acolher o importante evento, o Maracanã – maior estádio do mundo – recebia os últimos retoques. Espanha, Itália, Suécia, Iugoslávia, Uruguai e outros países classificados eram esperados com grande expectativa pelos torcedores.
A terra do samba e do futebol estava em festa. Haveria também, naquele ano, eleições para presidente. Os getulistas não escondiam seu euforismo, com a possibilidade da volta ao poder do líder do Partido Trabalhista Brasileiro. Mas agora era o carnaval.
Rosa e Alice preparavam as fantasias estilo Carmem Miranda. Tuta vestia-se como mocinho da farwest, filmes dos cowboys norte-americanos. As músicas carnavalescas tomavam conta das rádios. O salão do Onze Cariocas F.C., decorado a caráter, fazia dos bailes grande animação. As escolas de samba e blocos carnavalescos invadiam as ruas centrais da grande cidade. As fábricas baixavam suas portas para que os operários participassem da folia do Rei Momo. Somente o Sr. Otávio parecia não se interessar pela movimentação festiva e nas suas obras os empregados continuavam trabalhando alheios aos acontecimentos. Foi na final do último dia de carnaval, ao cair da tarde, quando todos cansados da folia só queriam encostar o corpo, que o servente Aguinaldo, adentando a casa apressadamente, trazia no rosto a preocupação.
Seu Arthur caiu do andaime e está machucado.
A correria se estabeleceu; todos se aperceberam então: o único da família trabalhando naqueles dias de festa. A pequena distância até a obra foi vencida em poucos minutos, seu Otávio foi seco e grosso:
– Chamem logo um médico. O que o caso parece grave, tá com jeito de derrame cerebral.
O roncar forte que parecia sair das profundezas do pulmão; o peito ofegante à procura de oxigênio; a boca aberta mostrando um único dente na arcada superior, jamais esqueceria. Aquele corpo travava sua última batalha, e o último suspiro pareceu explodir o peito. A paz fora a conquista daquele guerreiro que, parecendo perder, vencia.
Tristes foram os dias que se seguiram à morte de meu avô. As conversas descontraídas e as cantorias não mais aconteciam. Sua ausência na mesa da sala – onde todas as noites passava horas lendo as notícias do jornal – criaria um vazio jamais preenchido.
Meses depois o Brasil perdia a copa em jogo decisivo contra o Uruguai, e pouco se falava sobre o assunto.
– Ganharemos a copa e Getúlio volta à presidência do país.
O otimismo do Velho Arthur já não estava mais ali. Getúlio Vargas eleito presidente no final daquele ano. Estava quebrado o elo da família, o que a continha. Cada um procuraria seu próprio destino dando um sentido individual à sua vida. Trabalhavam na oficina de parafusos da Rua do Grito, Tuta, Josué, Bié e agora eu que contava com doze anos de idade e havia terminado a escola primária e que até então ganhava algum, engraxando sapatos. Os alemães ofereciam boas condições aos bons operários. Produzir mais era ganhar mais.
– Menino forte tem saúde, vai trabalhar no torno revólver.
Do pobre vocabulário e sotaque caraterístico, percebia-se a linha de raciocínio: “Esses braços nos trarão mais lucros”. O salário baseado na produtividade, permitia que eu e Bié, pudéssemos frequentar o curso noturno da Escola de Comércio do Alto do Ipiranga.
A chegada da adolescência trazia os conflitos próprios da idade. Tudo mudava rapidamente. Minhas fantasias amorosas alimentadas anos a fio desabaram diante do argumento de Marília:
– Há duas oportunidades na vida de uma mulher para se viver uma boa situação econômica; quando nasce, ou quando casa. A primeira já perdi, mas a segunda não deixarei escapar. Você é um bom rapaz, Deni, mas muito pobre, e isso não é o que quero pra mim.
A sentença conclusiva não dava margem a qualquer contra argumentação. Senti isso num toque de mágica. Todo romantismo sepultado. A indignação àquela mesquinhez por trás da beleza e fragilidade de Marília incinerava sua imagem, reduzindo-a a algo que nunca existira.
Em Bié, a agressividade aflorava com tamanha intensidade que os torcedores do Juvenil do Onze da Vila F.C., onde jogávamos futebol, sempre aguardavam um espetáculo à parte.
– Vamos ver o que Bié vai aprontar desta vez! – eram os comentários antes dos jogos.
Conseguiram ganhar a simpatia da colônia nordestina que assistiam aos jogos invariavelmente.
Naquela tarde chuvosa de domingo, o “Cabra Macho” como era chamado, não fazia justiça ao adjetivo. No campo um lamaçal, errava as jogadas seguidamente; a torcida adversária aproveitava para enervá-lo. Lembrava um touro furioso na arena. Desiquilibrou-se, deslizou, cai e ficou estatelado no barro sem ao menos tocar na bola que lhe fora endereçada. Diante da cena, que se tornava hilariante, a pequena plateia feminina do time adversário, quase toda formada por namoradas e esposas dos jogadores, não perdoaram. Foi a gota d’água. Querendo agredir o mundo, Bié abaixou o calção e pegando em seu membro, gritou aos quatro cantos do campo:
– Olha pra vocês, suas putas. Filhas da puta!
O jogo parou, o primeiro a manifestar-se com a fúria animalesca foi um crioulo de cara arredondada, baixo e gordo, cuja sua esposa se encontrava entre as torcedoras. Recebido com violento chute no abdômen, rolou na lama o Leitoa, como era conhecido. O berro do Leitoa foi o detonador da pancadaria. Camisas e calções totalmente lameados confundiam os briguentos; o ponta-pé que recebi no traseiro tinha outro endereço.
– Vai pra puta que pariu! – gritei ao ver que o agressor era Renato, nosso zagueiro central.
Bié pulava de um lado para outro.
– Vamos mata-lo….! – era incontrolável a ira adversária.
A única saída era a debandada da praça de guerra e Bié não titubeou. Vários adversários em seu encalço. Acompanhei à certa distância, o grupo enfurecido. As valetas e poças d’água dificultavam a fuga de Bié, mas seus perseguidores tinham as mesmas dificuldades e as quedas faziam alguns desistirem. As pessoas saíam para as portas sem entender a gritaria. A torcida agora era toda a favor do Bié, não sabiam do ocorrido, mas a desvantagem era patente e o espírito de solidariedade posicionava-se pelo mais fraco. Distância entre caça e caçadores diminuta. A voz de Dona Matilda veio em seu auxílio como uma benção:
– Entre na casa Sargento!
Não havia tempo para pensar em outra salvação e as pernas extenuadas teriam que vencer mais cinquenta metros. Questão de vida ou morte. A porta aberta foi presente dos céus. Popularmente conhecido como Sargento Gaúcho, não só por sua origem sulina, mas principalmente pela sua imponência máscula, seu nome era Noronha e ele era cabo. Não contestava o gracejo de seu apelido e acrescentava:
– Sargento da gloriosa Força Pública.
Nos dias de folga o militar Noronha tinha um ritual que considerava sagrado:
Após o almoço regado por caipirinhas inconfundíveis no seu preparo: “A pinga tem que ser de alambique e o limão de qualidade especial”.
Acordou atarantado com a barulheira. Bié encolhido aos olhos dos moradores da casa, tremia e clamava por ajuda:
– Estão querendo me matar.
Não bastando aqueles quase dois metros de altura, com um revólver calibre trinta e oito em posição de tiro em uma das mãos, tinha na outra a tranca da porta e aí sentenciou:
– Quem der mais um passo é um homem morto.
Bufando de raiva o grupo estacou sabedores do perigo. Sargento Gaúcho falava alto pra não ter que repetir.
– Debandar, quem procura abrigo na minha casa encontra.
Ainda não conformados com o desfecho, resmungando palavras ofensivas – com cuidado, para não serem ouvidos – foram se retirando. Permaneci nas imediações e agradeci aos céus por Bié.
– Na minha longa carreira policial, nunca vi valentão durar muito. Esse menino anda aprontando demais e corre perigo. – foi a recomendação do Sargento à família.
Todos agradeceram a providencial proteção.
– Vá se lavar menino, parece um porco. – dizia vó Martha.
O religioso Josué via apenas uma solução para o problema:
– Somente Deus pode mudar o coração dele. Tomara que isso aconteça antes do pior. O Sargento tem toda razão e sabe do que está falando. Concluía.
O julgamento do acontecimento fugiu às regras democráticas sempre defendidas pelo Sr. Altino, Presidente da Agremiação. Não deu qualquer direito de defesa ao réu e esse fato ocasionou comentários diversos: Diziam alguns, que as duas filhas adolescentes do Sr. Altino, principalmente a Mafalda, não falava em outra coisa, a não ser que Bié era bonitinho pelado. Seu Altino não sabia como solucionar esse problema dentro de sua casa, diante das reclamações de sua mulher.
– Essas meninas andam muito assanhadas, não sei mais o que fazer! – Sr. Altino limitava-se a justificar que eram coisas próprias da idade, mas no fundo, estava ligando os fatos. O resultado foi a represália a Bié.
Na semana seguinte, a caminho da Escola de Comércio, os comentários eram seguidos por gostosas gargalhadas. Um bom momento aquele:
– A Mafalda se entusiasmou com o pintinho do Bié, imagine se visse a “Juruba” do Migué.
– Cheguei a escutar a explosão do saco do Leitoa. – dizia Milton, exagerando.
Argemiro, Renato, Gerson, Milton, Bié, todos nós falávamos e ríamos ao mesmo tempo. Bié reclamava da maneira que fora punido. Ficar um mês fora do time significava quatro jogos apenas na torcida, no seu entender era uma penalidade muito severa.
– Vi uma bunda cheia de lama e mandei o pé, como iria saber que era a do Deni. Bunda limpas são parecidas, o que dirá as sujas de barro.
– Está justificado, mas a verdade é que ainda não estou conseguindo sentar.
– Coitadinho, a bundinha dele ainda está doendo. – completou Gerson, ao mesmo tempo que levava a mão no local do ferimento, obrigando-me a desvencilhar. E lá íamos nós.
Ao passo que nos aproximávamos da Escola, tornava-se mais nítida a imagem da professora de Inglês. Há algum tempo percebia seu olhar carinhoso e sua voz ganhava uma conotação sensual, não deixando esconder totalmente a maneira profissional ao falar comigo.
– Deni, espere na minha mesa quando a aula terminar. Precisamos conversar.
Observei certo nervosismo nas palavras da professora, e senti que seu comportamento tornou-se inseguro pelo resto da aula. Esperei que a sala ficasse vazia e dirigi-me à mesa, onde Izabel fazia algumas anotações.
– Algum problema, professora? – perguntei.
– Nada de grave. – a voz nervosa. – Tenho observado pequena variação para baixo no seu grau de aproveitamento de minha matéria. Alguma dificuldade sentimental; alguma namoradinha? – foi direta.
Não professora, nunca tive uma namorada de verdade. – respondi e fui despretensioso e inocente.
Senti que a professora se descontraía e colocava-se mais à vontade.
– Tenho certeza de que irá se recuperar; menino forte e saudável como você precisa de uma namorada. Lembre-se, nada há de errado em se ter uma namorada. Enfatizou.
A partir de então, a professora de Inglês passava a demonstrar uma atenção toda especial no nosso convívio e isto muito agradava.
– O que há com você Deni, está calado; o pontapé foi na bunda e afetou a cabeça. – observou Milton.
Chegando à escola, o grupo se dispersou em direção às salas de aula.
Izabel não era exuberante beleza, porém seu corpo atlético, sua extrema simpatia e inteligência, faziam dela uma mulher bastante atraente. Trabalhava como secretária na Fábrica dos Ingleses e à noite lecionava Inglês na Escola de Comércio, o que lhe dava condições de total independência. Há muito morava sozinha, tipo de vida incomum naquela época, em que as moças deixavam suas famílias somente por ocasião do matrimônio.
Na festa de final de ano letivo o vozerio tomava conta do ambiente. Colocava-me timidamente num dos cantos do pátio, quando fui abordado de maneira gentil por Izabel. Irradiava simpatia e estava bem vestida.
– Não está bebendo nada, Deni?
– Sim… ia buscar um refrigerante.
Percebendo minha inibição, demonstrou grande amabilidade e acompanhou-me até o local das bebidas.
Conversamos aproximadamente meia hora, eu um tanto lacônico, enquanto ela discorria com segurança sobre os mais diversos assuntos. O convite para sair foi o lance que faltava num perfeito jogo de xadrez em que a jogada fora arquitetada com toda maestria.
– Saia primeiro e me espere enquanto me despeço de algumas pessoas.
O Volkswagen vermelho não demorou a surgir na esquina da Rua Agostinho Gomes. Confesso que estava meio confuso, Izabel percebeu.
– Fique à vontade Deni, vamos ouvir música em meu apartamento.
Deixei-me levar como um barco que estando à deriva ia sendo conduzido por uma força maior, nada havia a perder. Izabel deveria saber o que estava fazendo. Na inexperiência dos meus dezesseis anos de idade, não sentia a autoconfiança necessária para aquele momento. A porto foi fechada e ficamos nos olhando sem nada dizer. Com movimentos lentos de mãos tremulas, Izabel começou a desabotoar minha camisa, deixando-me desnudo da cintura para cima. Envolvido por uma força inexplicável, tornei-me um tanto agressivo, o que fez Izabel colocar-se na posição de fêmea, e isso parecia ser o que ela buscava. O apetite sexual de dois animais no cio, seria a descrição perfeita, para aqueles instantes subsequentes. O êxtase, por um instante, roubou-me toda energia. Permaneci sentado no chão da sala, envolvido por algumas almofadas, que pareciam estar ali propositalmente, enquanto ouvia o barulho aconchegante do chuveiro, lembrando a chuva que caía lá fora.
– Foi maravilhoso Deni, como sempre imaginei. Você está bem?
– Bem… ótimo mesmo.
A vida tinha momentos maravilhosos como aquele. Por um momento pensei estar sonhando.
Izabel enrolada em uma toalha felpuda, parecia ler meus pensamentos, e passou a fazer observações perfeitas que me trouxeram à realidade, demonstrando como sabia orientar sua vida; aquela mulher de vinte e seis anos de idade.
– O que aconteceu entre nós deverá ser mantido no mais seguro sigilo. Confio na sua descrição. Podemos continuar por um longo período se tudo for observado.
Jogo gostoso, aquele arquitetado por Izabel. Conhecia meus hábitos e personalidade, sabia do meu temperamento discreto.
Izabel continuou e parecia ler uma peça estatutária sob o qual não poderia contestar.
– Nossos encontros acontecerão quando ambos estivermos desejosos.
– Como manteremos contato para que ocorra os encontros?
As surpresas aconteciam a cada resposta.
– Passo em frente da fábrica de parafusos no horário de folga para almoço, dou dois toques na buzina, aí você me telefona se também estiver com vontade.
– Extraordinário! Parece coisa de cinema, pensei.
– Finalmente, não há qualquer compromisso entre nós, assim sendo, o rompimento poderá se dar em qualquer momento se uma das partes assim o quiser.
– Nada há do que discordar. – foi minha resposta. Seu cúmplice perfeito.
– Vamos pra cozinha que vou preparar um lanche antes de você ir embora.
O apartamento de Izabel ficava num prédio de três andares, cuja parte térrea era ocupada por um bar sorveteria. A escada de acesso lateral dava condições de entrar e sair sem ser observado. Agora cabia fazer a minha parte, não perderia aquele jogo, pensei.
Certa ocasião o Bernardo Bichiga, apelido estava ligado ao rosto cheio de espinhas, e que tinha suas razões para as reclamações constantes a respeito do óleo solúvel do torno revólver a cujo vapor atribuía sua dermatose, interrompeu a costumeira leitura do jornal diário e observou:
– Ainda não consegui entender esse Volks vermelho, que passa por aqui de vez em quando, e, o motorista usa a buzina sem uma razão aparente.
– Vai ver que é promessa. – respondi no estalo.
O coração batia forte, esperava ardorosamente por aquele chamado, o seu canto de sereia era minha ficção.
Bernardo continuou lendo o jornal.
– Esse Carlos Lacerda anda no pé do Getúlio. – comentou.
As agitações políticas tomavam conta das manchetes naquele ano de 1.954. O jornalista Carlos Lacerda, ferrenho opositor do Governo de Getúlio Vargas não dava tréguas, acabara de sofrer um atentado à sua vida, episódio em que foi morto o Major Rubens Florentino Vaz, fato que ficou conhecido como – CRIME DA RUA TONELEIROS – na Capital do País, sediada no Estado da Guanabara.
Grupo militares convencidos de que o crime estava ligado a elementos do Governo, passaram a pressionar o Presidente. Diante do insuportável quadro político que se formava, o Presidente Getúlio optou pela solução extrema, suicidando-se em vinte quatro de agosto de 1.954. Com a morte de Vargas, assumia a presidência o Vice João Café Filho. Eleito para o mandato seguinte, 1.956, 1961, Juscelino Kubitschek, político dinâmico e dotado de grande visão administrativa, traria grande desenvolvimento ao País, culminando com a construção de Brasília, cuja grande obra foi projetada pelos arquitetos
Agachados: 1, 2 Daniel Ignácio Franco – 5, Valentim Tangerino
Lucio Costa e Oscar Niemeyer.
Enquanto isso, no pequeno diâmetro do nosso quintal, novo barraco de madeira era construído. Mais dinheiro para o bolso do Sr. Otávio com o assentamento de mais uma família. Era a vez do Tio Horácio e sua prole. A história se repetia: O amarelão na pele das crianças denunciava a presença dos parasitos nos intestinos. Limonada purgativa e Biotômico, o problema estava resolvido. Agripino, o filho mais velho, com seu temperamento extrovertido, se destacava. Havia seis meses de sua chegada e já dirigia de maneira garbosa o caminhão da Tecelagem Jafet. Costumava exibir, nos finais de semana, seu terno jaquetão complementando pelo sapato bico fino, sempre tornando público a cada momento seu grande sonho:
– Qualquer dia desses estarei pilotando um dos ônibus da Auto Viação Cometa.
Referia-se ao pessoal de sua cidade natal, Capiaus do interior, numa demonstração de superioridade. Nos finais de semana que ficava com o caminhão para limpeza e revisão, lá íamos nós passear no Museu do Ipiranga. Sempre agitado, Agripino, parecia nunca estar satisfeito.
– Um passeio no litoral, Praia José Menino, dizem que aquilo é um verdadeiro paraíso… está no meu programa.
O grande número de pessoas no mesmo quintal não dava espaço para solidão, vida modesta; necessidades básicas atendidas.
Na noite de 29 de junho de 1958, o assunto era futebol. Finalmente os brasileiros conquistavam sua primeira copa. Os suecos se curvaram e até aplaudiram os adversários vencedores 5 gols a 2; a Suécia festejava o sucesso do maior certame de futebol mundial.
– Aquele criolinho do Santos F.C. acabou com os gringos. – falava sobre o garoto Pelé na fase inicial de sua extraordinária carreira futebolística,
– Garrincha, para mim, foi ele quem ganhou a copa.
– Nilton Santos, Didi, Zito, todos foram importantes na equipe