Construído em cinco anos, de 1885 a 1890, o prédio do Museu Paulista da Universidade de São Paulo foiprojetado pelo engenheiro italiano Tommaso Gaudenzio e, desde o início do século, é reconhecido como “lugar de memória nacional”.
A construção em estilo renascentista (há quem assinale uma parecença proposital com
o Palácio de Versailles, em Paris) reúne um acervo de mais de 200 mil peças entre utensílios domésticos e de uso pessoal, objetos provenientes de escavações arqueológicas, de instituições e corporações; instrumentos de trabalho, armas, veículos, numismática, filatelia, esculturas, pinturas, gravuras, fotografias, cartografia, manuscritos e impressos. Pela excentricidade, chamam a atenção dos visitantes as carruagens do século XVIII, as mechas de cabelo da Marquesa de Santos, as armaduras, armas, trajes de gala e vestidos de festas, além de uma maquete da bucólica São Paulo antiga, datada de 1841.
Além das áreas de exposição pública, o Museu é um centro de excelência nas áreas de
Arqueologia, Etnologia, Geografia e História. Seus estudos estão voltados para a formação da sociedade brasileira, do século XV até meados do atual, com predominância do período 1850/1950. Possui uma biblioteca com 70 mil livros, alguns raros exemplares de cunho histórico e um setor de Publicações e Vendas. A ala mais procurada é o Salão Nobre, onde está o quadro “Independência ou Morte”, de Pedro Américo. Além das mostras permanentes e temporárias, oferece cursos, seminários e estágios em áreas educacionais.
O projeto arquitetônico de Gaudenzio é de 1882 e a proposta inicial era “marcar” para a posteridade o lugar onde ocorrera, em 1822, o Grito da Independência (embora haja controvérsias sobre a localização exata).
Um dos primeiros diretores do Museu, Affonso de E. Taunay, descreveu assim a região
em seu livro Guia da Secção Histórica do Museu Paulista, publicado em 1937, pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo:
Em 1822 era o Ypiranga semi-deserto: de longe em longe, ao longo do Caminho do Mar,
apparecia alguma casinha de morador – pobre casebre de caboclo; tão perto de São
Paulo estava-se, com tudo, em pleno campo.
Às margens do riacho, tão celebre hoje, havia pequena chácara, a mais notável construcção do bairro, a única talvez, pertencente ao Coronel João de Castro de Canto e Mello, personagem para quem a roda da fortuna ia desandar logo, no bom sentido. Dentro em pouco Visconde de Castro, estribeiro-mor do Império, tudo isto ia devel-o ao simples facto de ser o progenitor de belíssima creatura – a futura Viscondessa e Marqueza de Santos (…) De um momento para o outro adquiriu aquelle modestíssimo e feio trecho de charneca o mais extraordinário prestígio, desde que pelas 4 e ½ da tarde de 7 de setembro de 1822, clamou o Príncipe Regente, á face dos povos, que o Brasil se desligava de Portugal.
Para identificá-lo era preciso recorrer a um padrão natural e este só poderia ser um: o riacho do Ypiranga, correndo a uns trezentos e cincoenta metros do lugar onde o Príncipe soltara o seu brado de revolta e esperança. E desde ahi associou-se sempre a ideia da scena da proclamação da Independência á da existência de um riacho, modesto affluente do Tamanduatehy e, portanto, confluente do Tietê.
Na mesma obra, Taunay registra o primeiro documento que trata “em assignalar com
duradouro padrão o deserto local, perdido no meio do campo, onde o primeiro imperador fizera ouvir o seu famoso brado de rebellião”. O valioso registro data de 26 de fevereiro de 1923, é assinado por José Bonifácio de Andrada e Silva e dá ciência ao Governo Provisório da Província de São Paulo do seguinte teor:
Sendo presente a Sua Magestade o Imperador o Offício do Governo Provisório da Província de São Paulo, na data de 29 de janeiro próximo passado, acompanhando huma
Subscripção, a fim de se erigir no Lugar, denominado Piranga, hum Monumento, que
faça memorável o dia 7 de setembro do ano passado, em que foi por Sua Magestade
Imperial proclamada a Independência deste Império. O Mesmo Augusto Senhor, Anuindo
a tão justa Representação, na qual se desenvolvem sentimentos muito patrióticos e
honrados, Manda pela Secretaria de Estado dos Negócios do Império participar ao referido Governo que Há por bem Conceder a Licença requerida para a erecção do Mencionado Monumento.
Entre esse primeiro documento e o efetivo início das obras, como se pôde ver, passaramse 62 anos de muitas e infrutíferas tentativas. Em 25 de março de 1885, sempre sob relato de Taunay:
… deu-se a inauguração dos trabalhos do edifício projectado. Dous dias antes, dispuzera uma lei da Assembléia Provincial que o Monumento do Ypiranga se destinaria a um estabelecimento scientifico, comprehendendo o ensino de todas as disciplinas designadas sob o titulo de sciencias physicas e mathematicas e sciencias naturaes (p. 21).
Quando a obra ficou pronta, porém, um imprevisto. Os ventos fortes que castigavam a
região foram considerados insalubres para os alunos que ali deveriam estudar em período integral.
O Governo então decidiu transformá-lo em museu e, na seqüência, adquiriu a coleção do museu do Major Sertório, nascendo assim em 7 de setembro de 1895, o Museu do Ipiranga, denominação que se popularizou exatamente por estar situado num arrebalde distante que os índios, antes dos portugueses, já chamavam de ypi anga (lugar onde corre o rio de águas barrentas,vermelhas).
O edifício, com seus 62 salões, ocupa uma área de 6.400 metros quadrados. Está localizado dentro do Parque da Independência, uma área aberta de 16,1 hectares na principal entrada do bairro do Ipiranga, entre a avenida D. Pedro e rua Padre Marchett, limitada a leste pelo rio Tamanduateí e a oeste pelo Riacho do Ipiranga. Nesta área, outros importantes marcos históricos como o Monumento da Independência (inaugurado em 1922 para saudar o centenário da Independência), a Casa do Grito (onde supostamente parou para descansar a comitiva de D. Pedro), os Jardins Franceses, a Capela Imperial (onde desde 1972, ano do sesquicentenário da Independência, repousam os restos mortais de D. Pedro I e das imperatrizes Maria Leopoldina e Amélia de Beauharnais), o Museu de Zoologia (também da USP) e uma reserva de área verde.
Um dos marcos da cidade de São Paulo desde que foi criado, o Museu do Ipiranga ficou
com sua imagem bastante prejudicada nos anos 70. Algumas versões tentam explicar o fato. Uma delas baseia-se na omissão dos dirigentes da própria instituição e da Universidade de São Paulo, sua mantenedora desde 1963. Outra prefere ressaltar o total desinteresse para com os valores culturais e educacionais dos governos militares que, por sinal, fizeram, em causa própria, uso ostensivo do conjunto arquitetônico do Parque da Independência. Especialmente nos anos 70,um grande número de “comemorações cívicas” tinha o chamado “Altar da Pátria” como palco,
quando não era utilizado o próprio Museu – catalisador de todas as atenções, sobretudo no mês de setembro, durante os festejos da Semana da Pátria.
Nas festividades do sesquicentenário (1972), o Parque foi o principal cenário das celebrações em âmbito nacional. Houve, para tal finalidade, uma grande reforma nos jardins, nas fontes e na parte externa do prédio. Também se construiu um lance de arquibancada nos jardins em frente ao Museu (que, aliás, acintosamente afrontava os traços renascentistas de toda a arquitetura e, por isso, foi implodida em 1986). Instalou-se em toda a área um sofisticado (e caríssimo) sistema de audiovisual. A parafernália eletrônica projetava o espetáculo “Luz e Som”, uma ode de patriotismo e louvação ao regime vigente. Enquanto as fontes dos jardins franceses jorravam
jatos d’água iluminados e multicoloridos, num Parque da Independência inteiramente às escuras, vozes de atores famosos narravam fatos da História do Brasil na versão positivista dos militares, de ordem e progresso. Como fundo musical, o Hino Nacional e o da Independência. De repente, grandes holofotes projetavam a imponente fachada do Museu em diversos tons e cores. Os espectadores, previamente selecionados, acomodados na arquibancada aplaudiam e, ao final, acreditavam mesmo que existia o tal “milagre brasileiro”.
Enquanto a imagem da ditadura andou em alta, o Parque da Independência também era
privilegiado com verbas e cuidados. O Museu enquanto instituição histórica e científica, porém, viveu uma fase de ostracismo. Minguaram as verbas para pesquisas, reformas e ampliação do acervo.
A partir de 1973, a crise do petróleo colocou à mostra a tibieza social do governo militar.
Por mais sonoro e retumbante que fosse, o “Luz e Som” não convencia mais ninguém. A fórmula também já estava absolutamente gasta e os aparelhos começaram a dar panes irreparáveis. Faltavam público e interesse. Suspendeu-se o espetáculo, os equipamentos deterioram e todo o Parque foi relegado ao abandono, virando ponto de encontro de casais e marginais, inclusive pela falta de iluminação.
O Museu que não viveu o período áureo, então, passou a viver um absoluto isolamento.
Transformou-se numa “ilha” dentro da comunidade, só lembrada às vésperas da Semana da Pátria, quando ganhava, às pressas uma limpeza e uma tinta externa… Ou, pior, quando algum ato de vandalismo ou mesmo assaltos e mortes registravam-se em seus arredores.
Vale um esclarecimento e uma observação.
O esclarecimento: Além dos noticiários dos jornais que inicialmente saúdam o espetáculo de Luz e Som “como um espetáculo cívico de louvor à Pátria” e mesmo as diversas personalidades consultadas, como o próprio professor Witter, que “ser diretor do Museu à época era o mesmo que ter um lugar para esperar, com algum sossego, à aposentadoria”. Em outros contatos, com integrantes da Sociedade Amigos do Museu Paulista, ficou a impressão que aquele foi um período que a comunidade acadêmica prefere esquecer. Tanto é que na publicação, Às Margens do Ipiranga, que reverencia o centenário do edifício do Museu Paulista e anuncia a Exposição do Centenário, há um mero registro do período na seção de cronologia: “1975. 3 de abril.
Tombamento do edifício pelo Condephaat – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo”.
A observação: O Parque da Independência é na verdade um espaço de muitos donos e de
ninguém. Senão vejamos: o Museu Paulista e de Zoologia são da USP; o Monumento, a Capela e a Casa do Grito pertencem a União que é, em tese, proprietária de toda área. Mas, quem cuida da conservação das alamedas e jardins é a Prefeitura, incluindo o bosque atrás do Museu. Todas as vezes que se coloca em discussão a reforma e/ou conservação de áreas comuns surge a necessidade de uma comissão que analisa o assunto e dá o veredicto, o que significa um atraso de meses, não rara vezes, de anos…